Na Web: Deleuze e a axiomatização capitalista (trecho de aula)

Trecho inicial (em português) de uma aula de Deleuze sobre a axiomatização capitalista, anterior à publicação do livro O anti-Édipo. Trata-se de uma tradução disponível na internet (cujo tradutor é desconhecido), realizada a partir da transcrição original que está neste link: www.webdeleuze.com/textes/115


O que acontece com o corpo de uma sociedade? São sempre fluxos, e uma pessoa é sempre um corte de fluxo. Uma pessoa é sempre um ponto de partida para uma produção de fluxo, um ponto de chegada para uma recepção de um fluxo, um fluxo de qualquer tipo; ou, melhor ainda, uma intercepção de vários fluxos.

Se uma pessoa tem cabelo, esse cabelo pode atravessar diversas etapas: o penteado de uma garota não é o mesmo que o de uma mulher casada, não é o mesmo que o de uma viúva: há todo um código do penteado. Uma pessoa, na medida em que faz seu penteado, apresenta-se tipicamente como uma interceptora em relação a fluxos de cabelo que ultrapassam o seu caso e esses fluxos de cabelo são, eles mesmos códigos segundo códigos muito diferentes: o código da viúva, código da garota, código da mulher casada, etc. Este é finalmente o problema essencial da codificação e da territorialização, que é o de sempre codificar fluxos assim, como um meio fundamental: marcar as pessoas (porque as pessoas estão sempre na intercepção e no corte de fluxos, elas existem nos pontos de corte dos fluxos).

Mas então, mais do que marcar as pessoas – marcar as pessoas é o meio aparente -, sua função mais profunda, a saber: uma sociedade só tem medo de uma coisa: o dilúvio; ela não tem medo do vazio, ela não tem medo da penúria ou escassez. Sobre ela, sobre seu corpo social, algo vaza e nós não sabemos o que é, algo flui que não é codificado, algo que, em relação a essa sociedade aparece como incodificável. Algo que fluiria e que arrastaria essa sociedade a uma espécie de desterritorialização que faria a terra sobre a qual ela se instala dissolver-se: pois bem, esta é a tragédia. Encontramos algo que se esfacela e não sabemos o que é, não responde a código algum, rompe o campo sob esses códigos; e isto vale, a esse respeito, até mesmo para o capitalismo que sempre acreditou ter assegurado seus simili-códigos; é isto que designamos como o famoso poder de recuperação dentro do capitalismo – quando dizemos recuperação queremos dizer: a cada vez que lhe parece escapar, parece passar por baixo desses simili-códigos; ele retampona tudo, e acrescenta um axioma a mais e a máquina inicia-se novamente. Pense no capitalismo no século XIX: ele vê brotar um pólo de fluxo que é, literalmente, o fluxo, o fluxo dos trabalhadores, o fluxo do proletariado. Bem, o que é que brota, que brota maldosamente e que arrasta a nossa terra, para onde vai? Os pensadores do século XIX têm uma reação muito estranha, notavelmente os da escola histórica francesa: é a primeira a ter pensado, no século XIX, em termos de classes, foram eles que inventaram a noção teórica de classes e inventam-na justamente como uma peça essencial do código capitalista, a saber: a legitimidade do capitalismo vem disso: a vitória da classe burguesa como classe oposta à aristocracia.

O sistema que aparece em Saint-Simon, A.Thierry, E. Quinet é a tomada de consciência radical da burguesia como classe e toda a história, eles a interpretam como a luta de classes. Não é Marx quem inventa a compreensão da história como luta de classes, é a escola histórica burguesa do século XIX: 1789, sim, é a luta de classes, eles se encontram tomados de cegueira à medida em que vêem fluir na superfície atual do corpo social este fluxo esquisito que eles não conhecem: o fluxo proletário.

A idéia de que isto seja uma classe não é possível, não se trata de uma neste momento: o dia em que o capitalismo não pôde mais negar o proletariado como classe, coincide com o movimento onde, na sua cabeça, ele encontrou um momento para codificar tudo isso. Isto que nós chamamos de potência de recuperação do capitalismo, que é isso?

É que ele dispõe de uma espécie de axiomática e, à medida em que ele dispõe de algo de novo que ele não conhece, é como para toda axiomática, é uma axiomática que, no limite, não é saturada: ele está sempre pronto para adicionar um axioma a mais para restaurar sua marcha. Quando o capitalismo não pôde mais negar que o proletariado era uma classe, de modo que ele reconhece uma espécie de bipolaridade de classe, sob a influência das lutas operárias do século XIX, e sob a influência da revolução, este momento é extraordinariamente ambíguo já que é um momento importante na luta revolucionária mas é um momento essencial da recuperação capitalista. Eu te faço mais um axioma, te faço axiomas para a classe operária e para a potência sindical que a representa, e a máquina capitalista incha e reinicia-se, ela selou a brecha. Em outros termos, para todos os corpos de uma sociedade, o essencial é impedir que escorram sobre ela, sobre suas costas, sobre seu corpo, fluxos que ela poderá codificar e aos quais ela não poderá assinalar uma territorialidade.

A falta, a penúria, a fome, uma sociedade, ela pode codificá-los. O que ela não pode codificar é quando essa coisa aparece, aonde ela se diz: quem são esses caras aí? Então, em um primeiro momento, o aparelho repressivo se põe em movimento, se não os pode codificar, tenta-se aniquilá-los. Em um segundo tempo, tenta-se encontrar novos axiomas que permitam recodificá-los por bem ou por mal.

Um corpo social se define bem assim: perpetuamente coisas, fluxos que correm por cima dele, fluxos correm de um pólo a outro e isto é perpetuamente codificado e há fluxos que escapam aos códigos, então há o esforço social para recuperar tudo aí, para axiomatizar tudo isso, para remanejar um pouco o código, afim de dar lugar aos fluxos que são tão perigosos: de repente, há jovens que não respondem mais ao código: eles se metem a ter um fluxo de cabelo que não estava previsto, que vamos fazer? Tentaremos recodificar isto, acrescentaremos um axioma, tentaremos recuperar, ou será que há alguma coisa aí que continua a não se deixar codificar, e aí?

Em outras palavras, é o ato fundamental da sociedade: codificar os fluxos e tratar como um inimigo esse que, com relação a ela, apresenta-se como um fluxo incodificável porque, mais uma vez, questiona todo o chão, todo o corpo desta sociedade.

Diria isto de todas as sociedades, salvo, talvez, da nossa, isto é, do capitalismo: ainda que tenha acabado de falar do capitalismo como se, como todas as outras sociedades, ele codificasse os fluxos e não tivesse outros problemas, mas talvez tenha ido muito rápido.

Há um paradoxo fundamental do capitalismo como formação social: se é verdade que o terror de todas as outras formações sociais tenha sido os fluxos descodificados, o capitalismo, ele se constituiu historicamente sobre algo incrível, a saber, o que era o terror para as outras sociedades: a existência e a realidade de fluxos descodificados, e fez deles assunto seu.

Se fosse verdade, isso explicaria que o capitalismo é o universal de toda sociedade, num sentido muito preciso: em um sentido negativo, seria o que todas as sociedades temeram acima de tudo, e temos a impressão que, historicamente, o capitalismo... de uma certa maneira, é o que toda formação social não cessou de tentar conjurar, não cessou de tentar evitar, por quê? Porque era a ruína de todas as outras formas sociais. E o paradoxo do capitalismo é que uma formação social se constituiu sobre a base do que era o negativo de todas as outras. Isso quer dizer que o capitalismo só pôde se constituir sobre uma conjunção, um encontro entre fluxos descodificados de qualquer natureza. O que era o mais temido de todas as formações sociais, foi a base de uma formação social que devia engolir todas as outras: o que era o negativo de todas as formações tornou-se a positividade mesma de nossa formação, e isso é estremecedor.

E, em que sentido o capitalismo se constituiu sobre a conjunção de fluxos descodificados? Ele precisou de extraordinários encontros ao fim de processos de toda natureza, que se formaram no declínio do feudalismo. Essas descodificações de toda natureza consistiram na descodificação de fluxos característicos, sob a forma da constituição de grandes propriedades privadas; descodificação de fluxos monetários, sob a forma do desenvolvimento da fortuna mercantil; descodificação de um fluxo de trabalhadores sob a forma da expropriação, da desterritorialização de servos e de pequenos camponeses. E isso não basta pois, se tomarmos o exemplo de Roma, a descodificação na Roma decadente, ela aparece plenamente: descodificação de fluxos de propriedades sob a forma de grandes propriedades privadas; descodificação de fluxos monetários, sob a forma de grandes fortunas privadas; descodificação dos trabalhadores com a formação de um subproletariado urbano: está tudo aí, quase tudo. Os elementos do capitalismo encontram-se reunidos, simplesmente, não há encontro.

O que faltou para que se realizasse o encontro entre os fluxos descodificados do capital ou do dinheiro e os fluxos descodificados dos trabalhadores para que se realizasse o encontro entre o fluxo de capital nascente e o fluxo de mão-de-obra desterritorializada, literalmente, o fluxo de dinheiro descodificado e o fluxo de trabalhadores desterritorializados? Com efeito, a maneira como o dinheiro se descodifica para tornar-se capital-dinheiro e a maneira como o trabalhador é arrancado da terra para tornar-se proprietário de sua mera força de trabalho; estes são dois processos totalmente independentes um do outro, é necessário que haja um encontro entre os dois.

Com efeito, o processo de descodificação do dinheiro para formar um capital se faz através das formas embrionárias do capital comercial e do capital bancário; o fluxo do trabalho, livre possuidor de sua mera força de trabalho, se faz através de toda uma outra linha que é a desterritorialização do trabalhador ao final do feudalismo e esses poderiam muito bem não terem se encontrado. Uma conjunção de fluxos descodificados e desterritorializados, é isso que está na base do capitalismo. O capitalismo se constitui sobre a falência de todos os códigos e territorialidades sociais pré-existentes.

Se o admitimos, o que é que isso representa? A máquina capitalista é propriamente demente. Uma máquina social que funciona a base de fluxos descodificados, desterritorializados. Mais uma vez, não é que as sociedades não tenham tido a idéia: eles tiveram a idéia sob a forma de pânico, e se tratava de impedi-lo – era a inversão de todos os códigos sociais conhecidos até o momento – então, uma sociedade se constituiu sobre o negativo de todas as sociedades pré-existentes, como ela pode funcionar? Uma sociedade à qual lhe é próprio descodificar e desterritorializar todos os fluxos: fluxo de produção, fluxo de consumo, como isso pode funcionar, sob que forma? Talvez o capitalismo tenha outros procedimentos diferentes que não a codificação para funcionar, talvez seja completamente diferente. O que eu tenho procurado até agora foi refundar, em certo nível, o problema da relação CAPITALISMO-ESQUIZOFRENIA e a fundação de sua relação se encontra em algo comum entre o capitalismo e a esquizofrenia: o que eles têm completamente em comum – e talvez seja uma comunhão que nunca se realiza, que não toma uma figura concreta – é a comunhão de um princípio todavia abstrato, a saber: tanto um como o outro não cessam de fazer passar, de emitir, de interceptar, de concentrar os fluxos descodificados e desterritorializados.

Essa é sua profunda identidade, e não é no nível do modo de vida que o capitalismo nos torna esquizos, é no nível do processo econômico: tudo isso só funciona por um sistema de conjunção, então digamos a palavra, sob a condição de aceitar que essa palavra implica numa verdadeira diferença de natureza com os códigos. É o capitalismo que funciona como uma axiomática, uma axiomática dos fluxos descodificados. Todas as outras formações sociais funcionaram sobre a base de uma codificação e de uma territorialização de fluxos e entre a máquina capitalista – que faz uma axiomática de fluxos descodificados enquanto tais, ou desterritorializados enquanto tais - e as outras formações sociais, há realmente uma diferença de natureza que faz com que o capitalismo seja o negativo de todas as sociedades. Ora, o esquizo, à sua maneira, com seu caminhar tropeçante, faz a mesma coisa. Em um sentido, é mais capitalista que o capitalista, mais proleta que o proleta [N.T.: prolo, no original em francês], descodifica, desterritorializa os fluxos, e aí se amarra a espécie de identidade de natureza do capitalismo e do esquizo.

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